O Estado de Santa Catarina sancionou, no último dia 19 de junho de 2019, a Lei Estadual 17.736, de 18 jun. 2019, que, por sua vez, vem alterar a Lei 10.297, de 26 dez. 1996 (Lei Orgânica do ICMS/SC), considerando, a partir de janeiro de 2020, a incidência do ICMS sobre os softwares, no que a lei chama de:
[…] disponibilização de bens digitais, tais como softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, mediante transferência eletrônica de dados e quando se caracterizarem mercadorias.
Tal alteração é fruto do PL 0055.5/2019, encaminhado à Assembleia Legislativa daquele Estado em 28 março de 2019, mostrando aliás, uma agilidade impressionante quando há intenção de atender aos interesses de arrecadação, a despeito dos interesses da tributação e da moralidade do Estado e do contribuinte como apregoa Klaus Tipke[5], sendo que o tema está há mais de 20 anos sendo discutido no âmbito do STF sem posicionamento definitivo ainda.
Na expectativa de se evitar conflitos com o ISS, em seu novel § 2º do art. 2º da lei original (sendo que o parágrafo único original se converteu em § 1º) estabeleceu-se que, para fins de incidência do ICMS (sic):
[…] o bem digital será considerado mercadoria quando a sua disponibilização ao consumidor final ou usuário:
I – compreender a transferência de sua titularidade, inclusive do direito de dispor do bem digital; e
lI – não estiver compreendida na competência tributária dos Municípios.
Algumas considerações iniciais quanto ao potencial questionamento da referida lei se fazem necessários, pois, em que pese ter havido, respeito ao princípio da anterioridade (art. 150, III, “b” e “c”) – a mesma entrará e vigor em 01 de janeiro de 2020 -, avista-se muita discussão à frente ainda, como de outro modo, tem sido desde a sua apresentação e a própria exposição de motivos, e que merecem nossas primeiras e superficiais considerações no presente texto.
Sem entrar no mérito dos autores e referências apresentados na aludida exposição de motivos, de forma a iniciar uma discussão sobre o tema, apresentamos dentre outros argumentos que se construirão ao longo do tempo, e, em rápida condensação jurídico-literária apresentamos abaixo alguns tópicos que nos parecem merecer imediata discussão:
I. Princípio da Segurança Jurídica e vício da matéria em vista de competência de Lei Complementar (art. 146 da CF):
Crítica que se apresenta: Embora seja competência constitucional do Estados (art. 155, II da CF/88) instituir o ICMS e até esteja “respaldado” (sic) no Convênio ICMS 106/2017 fica nítido o descumprimento da regra do art. 146 da mesma CF/88, em sua inteireza, pois o mesmo determina ser tarefa da Lei Complementar (nacional):
[…]
I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
[…]
Ou seja, em que pese a competência constitucional típica dos entes federados em instituir o ICMS, tal competência sempre será relativa em vista da problemática de nosso pacto federativo com 27 entes distintos, da segurança jurídica, do equilíbrio e da neutralidade fiscal.
Não bastasse isso, em linha semelhante, demonstrando invasão de competência do Estado, e evidenciando a relatividade e alcance de sua competência, o retro comentado Convênio ICMS 106/2017 é objeto da ADI 5958-DF promovida pela Associação Brasileira das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (BRASSCOM), que aguarda julgamento no âmbito do STF, e que sob nossa ótica também afronta a própria segurança jurídica como sobre princípio constitucional, como observarmos em nosso livro acerca da substituição tributária ao referenciarmos o Prof. Paulo de Barros Carvalho e outros autores que o entendem como tal e cada vez mais presente em julgamentos tributários deste jaez como o da ADI 5866/DF , pela Ministra Cármen Lúcia quando da concessão de limitar em Tutela Provisória quando da análise do Convênio ICMS 52/2017.
II. Fundamento em argumento anacrônico no RE 176.626-3 SP e desconectados com regras de interpretação tributária constantes nos artigos 108, I, § 1º, 109 e 110 do CTN:
4. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 176.626 SP, em 1998, em que foi relator o Min. Sepúlveda Pertence, admitiu a incidência do ICMS sobre o “software de prateleira”.
5. O acórdão deixou clara (i) a não incidência do ICMS sobre licenciamento ou cessão do direito de uso do programa; e (ii) a possibilidade de incidência do imposto sobre cópias em meio físico, comercializadas no varejo.
Crítica que se apresenta: Em que pese o referido acórdão reconhecer a dita não incidência do ICMS sobre os softwares e até mesmo reconhecer-se a evolução tecnológica no tópico 6 da referida exposição de motivos (abaixo transcrita no próximo tópico) e até apresentar evolução relativa quanto ao tema (vide posição do Professor Eurico de Santi) temos a considerar quanto ao anacronismo, que por ser uma decisão datada de 1998 não considerou a vigente Lei dos Direitos Autorais, Lei 9.610, de 19 fev. 1998 (em especial a regra do seu art. 7, XII, § 1º), respaldando-se em problemática anterior decorrente da Lei 7.646/87 (textualmente revogada pelo art. 16 da Lei 9.609, de 19 fev. 1998), o que torna, no mínimo, qualquer ilação complementar anacrônica (e no mínimo descuidada) quando usada de forma generalizada como foi na referida exposição, por mais que alguns dos seus argumentos continuem atuais:
Art. 7º São obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro, tais como:
…
XII – os programas de computador;
…
§ 1º Os programas de computador são objeto de legislação específica, observadas as disposições desta Lei que lhes sejam aplicáveis.
[…]
Ressalte-se que o anacronismo comentado alhures, refere-se ao fato de “ainda” se sustentar haver uma diferença entre os conceitos de software de balcão (ou prateleira) e o software personalizado (produzido pelas ditas softhouses), sendo este último, segundo tal entendimento, sujeito ao ISS, o que, ato continuo justifica, em parte, o argumento do § 2º, II do art. 2º da Lei Estadual 17.736/2019 em comento, em evidente descompasso com a ideia caraterizada pelo artigo 1º da Lei de Software atual, que estabelece que:
Lei Federal nº 9.609, de 19 de fevereiro de 1998.
[…]
Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados.
…
Lei Estadual de Santa Catarina 17.736, de 18 de junho de 2019.
[…]
Art. 2º ….
…..
VIII – a disponibilização de bens digitais, tais como softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, mediante transferência eletrônica de dados e quando se caracterizarem mercadorias.
§ 1º ….
…..
§ 2º Para fins de incidência do disposto no inciso VIII do caput deste artigo, o bem digital será considerado mercadoria quando a sua disponibilização ao consumidor final ou usuário:
I – compreender a transferência de sua titularidade, inclusive do direito de dispor do bem digital; e
lI – não estiver compreendida na competência tributária dos Municípios.
Ainda em apertada síntese, tal entendimento desconsidera, à luz do art. 110 do CTN[18], o fato de que não cabe à lei tributária estabelecer conceitos ou alterar definições e alcance de institutos de direito privado para definir competências tributárias, notadamente porque a nova lei de software (Lei 9.609/09), em atendimento ao art. 109 do mesmo CTN, acaba por estabelecer um marco regulatório claro que considera que os programas de computar, além de ser um conjunto de instruções imateriais em sua essência (bens intangíveis segundo a melhor classificação contábil), não se confundindo com o conceito percebido pela Lei Kandir e pelo escopo do ICMS, razão pela qual se reforça o vício de origem da lei estadual em pretender estabelecer regras gerais e limites legais ao tema, notadamente porque, por puro exercício de analogia (art. 108, I do CTN) não permitido pelo § 1º do mesmo artigo se estaria exigindo tributo não previsto em lei (complementar nacional frise-se).
III. Reconhecimento de superação da norma pela tecnologia e uso inadequado da AI 1.945-MT por conta dos seus meros efeitos liminares.
Crítica que se apresenta: Em complemento ao tópico anterior e ao alegado anacronismo, o tópico 6 reconhece a superação da norma pela tecnologia, mas não a ponto de reconhecer as demais consequências naturais da mudança da mesma e da própria lei de 1998.
Sob nossa ótica, com a legislação vigente (diferentemente dos julgados usados como referência) não se pode mais limitar a discussão aos conceitos clássicos de software de prateleira ou software personalizado, uma vez que se está falando em, essência, à um direito de autor, que, nos termos do § 5º do seu artigo 2º não se exaure pela “venda, licença ou outra forma de transferência da cópia do programa”, tornando a analogia e a generalização extremamente danosas ao melhor direito e que estariam, por si só, a justificar que tal tarefa caiba à uma lei complementar de caráter nacional e jamais ao ente federado de forma isolada de forma a gerar potenciais conflitos positivos e negativos de incidência.
Outro aspecto a ser considerado e que macula a pretensão catarinense está na perigosa menção de que a pendência estaria resolvida pelo Pleno do STF no julgamento da ADI 1945-MT, quando o que se tinha (e tem, de fato!), no máximo, o indeferimento do pedido de medida cautelar na referida ADI.
Ressalte-se que a mesma entende como “razoável” a aceitação de nova concepção aos bens sujeitos ao ICMS ante às novas tecnologias, o que não significa uma convicção absoluta, sendo uma inverdade que o tema estaria resolvido como sugere a exposição de motivos, pois apenas se manteve a questionada lei mato-grossense, por maioria como ressaltou o noticiário do STF em 26 de maio de 2010, observando-se também, que a referida ADI está sendo discutida desde 1999 e ainda não tem data prevista de julgamento, o que torna inverídico e lamentável tal argumento.
Tal argumento, com demonstra, sob nossa ótica, que a CCJ da ALESC não observou tal peculiaridade, quando deveria tê-lo considerada, pois a concessão ou não de liminares não está a induzir o entendimento definitivo sobre o tema, notadamente porque o mesmo ainda carece de decisão de mérito, dependendo de julgamento a ser marcado, como se pode observar a partir do portal do STF.
Em síntese, a alegação do tópico 7 em comento, é fruto apenas de decisão momentânea, em sede de liminar, frise-se, e que não corresponde à veracidade da alegação ainda por não haver discussão de mérito, o que torna o seu uso um desatino à melhor técnica jurídica na feitura da lei, ludibriando os incautos, pois como o tema se eternizou na nossa corte suprema já tivemos mudança do colegiado ao longo dos anos, que, por certo, não correspondem exatamente ao pensamento de outrora.
Ressaltando-se que o tema está apenas abordado de forma genérica no presente texto, observamos que há muito a se discutir sobre a própria constitucionalidade da referida lei catarinense e que poderá sugerir aos demais Estados e ao DF que o caminho seja esse, quando na realidade, não se pode fugir de uma lei complementar como anteriormente observado.
Observe-se também, durante o período em que se aguarda o início de sua vigência, que poderá haver posicionamento de isenção sobre o mesmo (a exemplo de alguns Estados como o Paraná[24]), bem como outras medidas equivalentes que a administração fazendária julgar adequadas, e que podem, momentaneamente, afastar a pretensão de discussão sobre o tema, mas não de forma a inibir tal pretensão enquanto vigorar a citada lei catarinense.
O fato é que, em tom conclusivo (superficial como dito anteriormente), e de posse destes argumentos todos, e de muitos outros que poderão ser aduzidos ao longo da discussão, entendemos, nestes instante, s.m.j., o tema como passível de discussão jurídica, cabendo aos interessados buscar as medidas adequadas, sempre lembrando que, por não haver uma decisão definitiva sobre o tema “software”, algumas questões poderão ser superadas futuramente quanto ao ICMS, mas prevalecendo, neste instante, a convicção do ferimento à segurança jurídica e a apropriação de função legal complementar que não cabe ao Estado.
José Julberto Meira Junior – OAB/PR 15.765 (Escritório Curitiba).